De manhã escureço,
De dia tardo,
De tarde anoiteço,
De noite ardo...
Monólogo de Orfeu
Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços!
Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
É mais por que te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada...
E sabes de uma coisa?
Cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto, – que é que eu sei!
Essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu,
Orfeu; tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem – nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo!
E me dizes essas coisas
Que me dão essa força, essa coragem
Esse orgulho de rei.
Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim!
Sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada.
Orfeu menos Eurídice...Coisa incompreensível!
A existência
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos.
Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida!
Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amadaMilhões amada!
Ah!
Criatura!
Quem poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres - que ele, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que estarei contigo!
eu te amo...
Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás se fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir...